História da Literatura – A Modernidade e o Modernismo do Poeta Português Fernando Pessoa
A Modernidade e o Modernismo do Poeta Português Fernando Pessoa. Resumo sobre a história da literatura.
APONTAMENTO
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um faso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
O poema Apontamento pertence ao heterônimo Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa, e sinaliza para uma angústia ontológica característica do modernismo literário correspondente ao contexto histórico em que estava inserido o poeta português.
Ao nos deparamos com um poema de Fernando Pessoa, em especial do heterônimo Álvaro de Campos, ou com outros grandes nomes inseridos no período de transição do século XIX para o XX, temos de estar atentos a determinada corrente de representação que caracterizou os primeiros poetas modernistas e que corresponde a uma batalha dialética entre uma “razão” idealista-iluminista e uma subjetivação-romântica.
A “grosso modo” podemos dizer que é basicamente isso que inicia o processo característico da linguagem e da representação da poesia modernista. Um olhar mais atento, no entanto, nos leva a uma terceira condição que perpassa essa dialética Iluminismo/Romantismo, uma condição que corresponde a uma nova relação humana com o tempo: o tempo industrial, o tempo das metrópoles, o tempo da auto-interpretação, o tempo dos deslocamentos dos “ismos”.
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Inserir essa nova noção de tempo que cerca os modernos, na dialética razão-eu, e assim formar uma tríade, torna-se um exercício complexo na medida que conceituar a complexidade e a riqueza da representação dos modernos é como que resumir em uma palavra um tratado ontológico em que o próprio observador/conceituador está inserido, sua conceituação seria e é, apenas um “caco”, dentre tantos cacos de um vaso vazio quebrado.
Domínio do tempo, angústia, falta, multiplicidade, carência. Esses cinco conceitos se encaixam à perspectiva poética de Pessoa em Apontamento. “Esperança pode ser um sexto conceito que se encaixa ontologicamente como aquilo que corresponda ao ato de criação, produtivo, ao fazer poético e sua crença na linguagem em meio à desesperança. O paradoxo aqui, é completamente natural, nos levando ao quarto conceito (multiplicidade) que pode ser substituído por “confusão” e que nos levaria ao quinto conceito (carência) que é resultado da multiplicidade de sentidos que se torna a própria carência/falta de sentido.
Tomando o poema de Fernando Pessoa observamos que essas cinco tentativas de conceituação se encaixam na perspectiva do “eu-lírico” e todas se comunicam com uma idéia maior de razão, representada no poema pelos deuses debruçados na escada, mas também pela criada descuidada, que mantém uma relação direta e tolerante ao olhar dos deuses.
A obra, a alma e a vida em “Apontamento” correspondem a essa “razão” extratificada na modernidade, instaurada na Ilustração, consumida no Romantismo e agora regurgitada por cada “corpo” moderno. Embora múltiplos, embora “cacos”, a expressão do “eu-lírico” está submetida ao olhar dos deuses, sua alma, sua obra e sua vida foram condicionados e estão ligados a um ato, mesmo que “descuidado”, de uma Razão criação/criada/criatura dos deuses, falível.
Essa ligação ainda gera um brilho confuso de um “caco” entre uma constelação de “cacos” no final do poema. Mesmo que um caco entre muitos, ainda sim temos uma valoração da existência e da produção de linguagem e sentido ao tomar o último verso: “E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem porque ficou ali.” Aqui podemos ter a relação e a importância do “eu-lírico” no mundo sendo observado “especialmente” pelos deuses e ao mesmo tempo uma desvaloração ou descrédito aos próprios deuses e àquilo que é superior no olhar, quando os próprios deuses incompreendem a posição do “caco/eu-lírico” no mundo.
Carlos Beto Abdalla
Historiador e Mestre em Estudos Literários
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