O Massacre de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto
O episódio envolvendo a comunidade religiosa de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no município de Crato, Cariri Cearense apresenta algumas características em comum com movimentos messiânicos bastante conhecidos na história do Brasil.
Entre eles os mais conhecidos são a de Canudos e a de Contestado. No entanto o caso de Caldeirão não conquistou a repercussão dos outros movimentos mencionados. Em comum pode se citar entre esses levantes a liderança de um beato e as reivindicações que visavam conquistar maior atenção do governo para a situação de pobreza em que vivia a população. Como ocorreu nos casos historicamente mais conhecidos, a comunidade de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto foi invadida e seus moradores foram massacrados. Esse tipo de medida além de conter um caráter punitivo, também representa uma maneira de coibir a proliferação de novos levantes sociais.
A recente historiografia brasileira apresenta diversos episódios em que grupos sociais menos favorecidos ousaram se levantar contra o poder dominante em busca de melhores condições de vida. Geralmente os levantes tinham como objetivo se insurgir contra a opressão de uma classe dominante que não apresentava preocupação com a população excluída socialmente.
Episódios como a Balaiada, a Cabanagem, a Revolta da Vacina, Canudos, Contestado, entre outros, tem em sua essência o sofrimento de um povo abandonado à própria sorte. Alguns deles como é o caso dos já mencionados entraram para a história e ainda hoje são estudados (superficialmente) nos livros didáticos. A menção desses movimentos é uma forma do governo se desculpar historicamente e reconhecer a importância dos mesmos para a mudança das estruturas sociais brasileiras.
No entanto, muitos episódios da nossa história continuam a ser ignorados pela falta de interesse em se desvendar as circunstâncias em que aconteceram, é o caso do massacre de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, município de Crato, Cariri cearense. A comunidade religiosa era comandada pelo beato José Lourenço, a população era composta por camponeses, descendentes de negros alforriados e romeiros seguidores de Padre Cícero que viviam em sistema de cooperação compartilhando tudo o que era plantado e produzido.
Semelhante à comunidade liderada pelo beato Antônio Conselheiro que liderou o movimento de Canudos, a comunidade de Caldeirão recebeu milhares de pessoas geralmente fugitivas da vida castigada do sertão nordestino, o lugar chegou a reunir uma população de mais de mil moradores, muitas vítimas da grande seca de 1932.
O período em que a comunidade se organizou era caracterizado pelo medo do avanço comunista pelo mundo, por isso qualquer foco que demonstrasse vestígios do “perigo vermelho” era rapidamente reprimido. Na presidência da república a época estava o presidente Getúlio Vargas, conhecido por sua aversão declarada ao regime disseminado pelos russos. Vargas combateu ferozmente o comunismo durante a fase do seu governo conhecido como Estado Novo (1937-1945). As medidas autoritárias do chefe da nação motivaram o ataque à comunidade de Caldeirão.
O sistema de colaboração em que viviam os moradores de Caldeirão desagradou os coronéis que lideravam a região e posteriormente os chefes políticos como é o caso do presidente Getúlio Vargas. Tudo o que era produzido na comunidade era compartilhado e todo o lucro era dividido por igual, sendo utilizado na compra de remédios, querosene para abastecer as lamparinas e outros itens necessários para a subsistência da população.
O Massacre
A região do nordeste brasileiro por muito tempo sofreu com o autoritarismo dos latifundiários locais conhecidos como coronéis. As alianças políticas que esses chefes locais estabeleciam com os líderes políticos aumentavam o seu poder e legalizava os maus tratos aos moradores das localidades mais carentes. A falta de expectativa em uma vida mais justa levava a população a se submeter aos mandos e desmandos dos fazendeiros.
A comunidade de Caldeirão de Santa Cruz chamou a atenção por andar na contramão do sistema injusto imposto pelos líderes regionais e pelo governo. Sobreviventes das injustiças sociais e das intempéries impostas pelo clima seco, os seguidores do beato José Lourenço conseguiram por algum tempo viver em um regime pautado pela igualdade e fraternidade, o que desagradou os latifundiários.
Acusados de praticar um comunismo primitivo, os moradores da comunidade religiosa foram duramente perseguidos. Além do medo de que os ideais comunistas se espalhassem pelo país, os grandes fazendeiros temiam de que o exemplo colaboração fosse seguido por outros grupos da região, o que poderia ameaçar a autoridade exercida por eles.
Em 1937, ano em que Getúlio Vargas liderou um golpe que garantiu a sua permanência na presidência da república e instituiu uma severa ditadura no país, os moradores da comunidade de Caldeirão foram denunciados e acusados de praticar o comunismo. Tropas do governo federal e da polícia militar do estado do Ceará invadiram e bombardearam a localidade, deixando um saldo de milhares de mortos que após o ocorrido foram enterrados em uma vala comum.
Pesquisadores supõe que o episódio pode ter sido o maior massacre da história brasileira, em que mil pessoas foram brutalmente assassinadas. Porém, passados setenta e seis anos do ocorrido o governo e o exército negam os fatos e vão contra a tese de massacre. Os corpos dos moradores massacrados nunca foram encontrados e a falta de um documento que registre o episódio dificulta o desvendamento dos mistérios que envolvem esse movimento messiânico.
Apesar do empenho de organizações não governamentais em descobrir onde os corpos dos romeiros foram enterrados, a localização da vala que abriga os corpos nunca foi encontrada. Em 2008, a ONG cearense SOS Direitos Humanos entrou com um pedido na justiça para que o governo identificasse e proporcionasse um enterro digno aos mortos, inclusive havia um pedido de indenização que seria destinado aos descendentes dos moradores de Caldeirão. O descaso do governo fez com que a ação fosse arquivada.
Lorena Castro Alves
Graduada em História e Pedagogia
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