Constituição de 88: ‘jovem senhora maltrapilha de 35 anos’
Carta da Cidadania e da Democracia, como cunhou Ulysses Guimarães, ficou na teoria
Uma jovem senhora de vestes esfarrapadas e sapatos furados. Assim pode ser caracterizada a Constituição federal em vigor, que completou 35 anos de sua promulgação, na última quinta-feira (5), com poucos motivos ou quase nenhum para comemorar.
Concebida como marco de superação do longevo (e autoritário) regime militar imposto ao país por 21 anos, a Carta Magna é excelente nas intenções, mas deixa muito a desejar, na prática.
Ao ser cunhada de ‘Constituição Cidadã’ – por enfatizar direitos e garantias individuais – por seu maior artífice, o deputado Ulysses Guimarães (PMDB/SP), a motivação básica de defesa da democracia é a maior perda para o país, uma vez que a forma de representação política, eleições diretas para cargos no Legislativo e no Executivo, carecem de um instrumento básico, o controle social do desempenho do parlamentar, prefeito, governador ou presidente da República.
Neste caso, o ‘civismo’ do brasileiro se limita ao ato de votar, nunca acompanhado pelo ato de ‘cobrar’, até porque não se dá mais importância a programas de governo ou prioridades de mandato, relegados a segundo plano, em favor de fachadas de marketing e fake news apelativas, oportunistas, quando não, caluniosas da honra alheia.
Sem cobrança efetiva da sociedade (des)organizada quanto ao uso e destinação do dinheiro público, as políticas públicas ficam ao sabor de conveniências políticas e partidárias, em que impera a descontinuidade de obras e serviços essenciais à população.
Isso pode ser constatado pelo fato de que mais de 100 milhões de brasileiros, em pleno século 21, sequer dispõem do direito fundamental ao saneamento básico, enquanto outros 35 milhões não têm acesso à água tratada.
Os dados constam do Instituto Trata Brasil, segundo reportagem publicada em março último pelo site G1, com base nos indicadores de 2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, que analisou um universo dos 100 municípios brasileiros mais populosos.
Outra deformidade pode ser observada no artigo 2º da lei maior, que trata da separação de “poderes da União (o Legislativo, o Executivo e o Judiciário), independentes e harmônicos entre si”, hoje substituída pela opulência do Judiciário, que assume o papel executivo e de formulador de leis, em afronta direta a esse basilar princípio constitucional.
Como bem acentua o experimentado jornalista em assuntos da Capital federal, Alexandre Garcia, em artigo recente no jornal ‘Estado de Minas’: “Os que operam as instituições estão lá em nosso nome; os que escreveram a Constituição e as leis, o fizeram em nosso nome e com o nosso voto. Os que fazem funcionar a administração do estado são nossos servidores. Mas tudo isso fica na teoria, porque na prática os que receberam o poder do povo se sentem donos do estado, da lei e das instituições, enquanto somos tratados como servos, pagadores dos impostos que sustentam os poderes em três níveis – e isso não é democracia, que é o exercício do poder do povo, regido pela Constituição”.
Em consequência, o desrespeito à Lei Magna ressuscita o retrocesso, o arbítrio, dos tempos da ditadura, justamente o que se pretendia extirpar, para sempre, a exemplo da hipertrofia da União na questão tributária, pois esta concentra, praticamente, a totalidade da arrecadação nacional, redistribuída conforme a vontade do ocupante do Planalto, sepultando o federalismo que define a República pátria.
Voltando à questão do ‘aclamado’ e logo esquecido ‘controle social’, Garcia faz menção aos modelos europeu e ianque, de voto distrital, jamais aprovado pelo Congresso Nacional, por motivos óbvios, uma que vez que este conferiria, de fato, poder ao eleitor de cobrar ‘in loco’ de seu ‘vizinho’ eleito, o cumprimento das ‘promessas de campanha’.
Por fim, é sempre bom lembrar o adágio do gênio da raça, o eminente jurista Rui Barbosa, e sua célebre frase: “A pior ditadura é a do Judiciário, porque contra ela, não há quem recorrer”, como a controversa invasão de competência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os demais poderes, a título de que? Defesa da democracia.
Resta saber de que democracia falamos. Certamente de grupos de interesse específicos, jamais da maioria, como é próprio significado da palavra demo (povo) cracia (governo), na tradução livre do grego.
Para arrematar, outra propalada quimera é o preceito constitucional de que a ‘lei é para todos’, contraditado pela soltura de presos ricos ou de alta periculosidade, muito antes do cumprimento da pena, ou seja, a Justiça é para quem tem recursos financeiros para recorrer de sentenças, já com trânsito em julgado, até obter uma liberdade, financiada pela viciada estrutura judiciária nacional.
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