A propagação do novo coronavírus pode acelerar o fim da globalização?
Com a disseminação do coronavírus, segundo especialistas, o debate se acalora sobre como o mundo pode se integrar ou separar em termos da globalização.
A globalização já vinha sendo ameaçada por diferentes grupos, tais como os ativistas climáticos, guerreiros comerciais, populistas e terroristas. Depois deles, eis que surgiu o coronavírus.
A disseminação do novo coronavírus, segundo analistas e especialistas, pode ser um ponto chave nos debates de como o mundo pode se unir ou segregar.
No entanto, antes mesmo do vírus surgir na Europa, outros fatores ambientais, tais como as mudanças climáticas, e fatores econômicos, como é o caso das discussões sobre o comércio injusto, vinham impulsionando as aflições sobre as viagens aéreas globais e as cadeias de suprimentos industriais globalizadas. Além disso, a sua propagação estimulou as incertezas sobre a confiança na China como parceira.
Os reflexos do coronavírus na economia
O vírus acabou por atuar no freio das economias e encorajou os populistas a reviver os discursos – com tons de racismo e xenofobia – por controles ainda mais rigorosos dos imigrantes, turistas e inclusive das multinacionais.
No rol dos desafios da globalização, sejam eles políticos ou ideológicos, o coronavírus pode se diferenciar.
“Sempre nos esquecemos de que estamos à mercê da natureza, e, quando os episódios passam, nós nos esquecemos e continuamos. Mas esse vírus trouxe à tona todas essas questões sobre a interconectividade do mundo que estamos construindo. Viagens aéreas, cadeias globais de suprimentos – está tudo ligado”, destaca Ivan Vejvoda, membro do Instituto de Ciências Humanas de Viena.
Ao passo em que o vírus vai se expandindo, em diferentes territórios, “isso torna a China um pouco mais frágil e nossa dependência dela como ‘a fábrica do mundo’ mais duvidosa”, salienta Vejvoda.
A acelerada propagação do vírus vindo da China é “mais uma gota d’água da globalização”, suscita Robin Niblett, diretor da Chatham House, instituição de pesquisa em Londres.
Os embates políticos entre os Estados Unidos e a China em torno do comércio, assim como as inquietações com as mudanças climáticas, já tinham acarretado em discussões do sentido, além das discussões sobre o custo do envio de peças entre os países e os possíveis impostos sobre o carbono nas fronteiras, advertiu ele.
Aliado ao risco de uma cadeira de suprimentos vulnerável a eclosão de um outro surto de coronavírus ou a uma China ainda mais autoritária, Niblett alerta: “Se você é uma empresa, tem de pensar duas vezes em se expor”.
Especialmente nesse momento, com mais nações empregando sanções e interdependência econômica “como uma nova forma de diplomacia coercitiva, vamos ficando mais avessos ao risco da globalização”, argumentou ele.
A globalização da doença
No entanto, a globalização da doença não é algo inédito, analisou Guntram Wolff, diretor da Bruegel, instituição de pesquisa econômica em Bruxelas. Como exemplos utilizou as mortes no período de chegada dos europeus às Américas e até a peste, que ocasionou o cancelamento do Carnaval de Veneza.
“O que é diferente é que, com o avião, as coisas podem se espalhar muito rápido”. As ações imediatas são recuar e criar barreiras. “Já vemos os números de voos caindo drasticamente”, exemplificou.
Em certo ponto, o novo coronavírus evidencia a instabilidade na globalização. As cadeias de suprimentos da iniciativa privada passaram a ter um alto grau de eficiência. As viagens aéreas são numerosas e intermináveis. Diante disso, o setor privado não cessa o movimento pelo globo.
Porém, qualquer modelo de resposta governamental coordenada é geralmente fraca e desarticulada – seja ela das mudanças climáticas, comércio ou saúde. E as iniciativas para fortificar os esforços públicos globalizados são atacadas pelos nacionalistas e populistas como violações à soberania.
Também não há muito o que os governos fazerem para limitarem as cadeias de suprimentos, sem contar que poucos deles no continente Europeu possuem flexibilidade financeira para investir dinheiro extra na economia.
Theresa Fallon, diretora do Centro de Estudos para a Rússia, a Europa e a Ásia, concordou que a maior parte da resistência pode voltar-se agora para o território chinês.
Ao retornar de uma viagem à Milão, ela relata que as autoridades medem a temperatura dos viajantes, os médicos tomam todo o cuidado com os pacientes em seus consultórios e os moradores se mantém distantes dos turistas chineses.
“O crescimento da China é uma história longa e positiva, mas tudo que sobe tem de descer”, expressou ela, já que a repercussão do vírus é como “uma espécie de cisne negro que mostra quão diferente o país é”.
A crise em torno da confiabilidade da China ultrapassa a fronteira da capacidade do país lidar com o coronavírus, declarou Simon Tilford, diretor do Forum New Economy, instituição de pesquisa em Berlim. “A falta de confiança só reforçará uma tendência existente entre as empresas de reduzir sua dependência e risco”, exprimiu ele.
Impacto na política
A propagação do vírus para a Europa também influencia na política, entusiasmando a extrema-direita anti-imigrante e antiglobalização, ponderou Tilford. “Já vemos muita preocupação populista com os méritos da globalização, beneficiando multinacionais, a elite e os estrangeiros, não a população e as empresas locais”, expôs ele.
Ou seja, os governantes que se apoiam no discurso de controle de fronteiras e imigração serão fortalecidos, ainda que o vírus cruze as fronteiras de forma facilitada.
“Seu argumento será que o sistema atual representa não apenas ameaças econômicas, mas também de saúde e segurança, que são existenciais, e que não podemos nos dar ao luxo de nos abrirmos tanto apenas para agradar às grandes empresas”, proclamou Tilford.
“Esse argumento pode atrair eleitores que odeiam o racismo evidente, mas que temem a perda de controle e um sistema vulnerável a uma parte distante do mundo”, complementou.
O abalo racial da disseminação do coronavírus é delicado, todos concordam, mas existe.
“É sempre diferente quando acontece em seu próprio bairro, entre pessoas como você. Quando isso acontece na Dinamarca, Espanha ou Itália, você tem mais a sensação de que isso ocorre entre as pessoas que compartilham o mesmo estilo de vida – portanto você pode ver isso acontecendo com você”, falou Stefano Stefanini, ex-diplomata italiano.
“Mas o vírus também permite que as pessoas expressem uma hostilidade aos chineses que elas podem ter sentido, mas que relutavam em expressar. Já existe uma corrente de medo dos chineses na Europa e nos Estados Unidos, porque eles representam um desafio à hegemonia ocidental”, encerrou Tilford.
*Com informações de Exame.
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